segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Ricardo, Coração de Leão

Ricardo, Coração de Leão
Links Relacionados
Durante 800 anos a vida de Ricardo, Coração de Leão deu origem a mitos e lendas. Ele conduziu um exército de cruzados à vitória contra os muçulmanos na Palestina. Um dos grandes reis guerreiros de Inglaterra, Ricardo era patrono dos trovadores que celebravam os seus feitos heróicos nas canções. Famoso pela sua coragem excepcional, diz-se que matou um leão apenas com as suas mãos.

Mas, nos últimos 100 anos, os historiadores modernos retratam Ricardo como um homem sanguinário, que abandonou a Inglaterra para vencer uma guerra no estrangeiro. independentemente do veredicto da história, a vida do rei Coração de Leão esteve repleta de conflitos. lutou contra o pai e os irmãos para assegurar a sua herança. Desencadeou uma guerra contra Saladino, líder dos muçulmanos na Terra Santa e lutou contra o rei francês pelo domínio das suas terras no ocidente de França.

Ricardo nasceu no dia 8 de Setembro de 1157 no Palácio Real Inglês, em Oxford. 32 anos mais tarde, foi coroado rei de Inglaterra, mas não estava destinado à nascença a herdar o reino. Como segundo filho do rei Henrique, governador de terras que se estendiam de Inglaterra até ao ocidente da actual França, Ricardo foi educado na esperança de herdar apenas uma parte dos vastos territórios pertencentes ao pai.

As origens angevinas (plantagenetas) de Ricardo

Nas várias histórias e lendas, Ricardo aparece invariavelmente como um rei inglês, nascido inglês, com uma "saudável" desconfiança em relação a tudo o que é francês. Na realidade ele não tinha nada em comum com essa descrição. os seus pais e avós eram franceses, ele foi educado em França e falava fluentemente o francês e o provençal, a língua mais falada na França ocidental. Pela cultura e educação dos seus antepassados ele era essencialmente francês.

O pai de Ricardo, Henrique II, era um príncipe francês que se tinha tornado um dos mais poderosos governantes da Europa Ocidental. A sua família controlova territórios que englobavam a Inglaterra, Anjou (que tinha herdado do seu pai e que dava o nome à sua família, os angevinos), a Normandia e o Maine (herdados da sua mãe). Possuía também interesses na Irlanda. Henrique segundo foi Lorde da Irlanda depois de 1771 e consideradava-se rei da Irlanda apesar de esse título não ser reconhecido na ilha. Através do seu casamento com Leonor da Aquitânia era também senhor das terras Sul da Aquitânia. Isto levava-o a entrar em conflitos constantes com os reis de França, os Capetos, que nessa altura só detinham o controlo directo de uma área limitada de França, à volta da cidade de Paris.

Três anos antes de Ricardo nascer, Henrique II acrescentou o reino de Inglaterra aos seus territórios. Não era, por isso, surpreendente que Ricardo visse pouco o pai que abandonou a Inglaterra para defender o seu território francês após o nascimento de Ricardo. Henrique esteve afastado durante 4 anos e meio e a mãe de Ricardo, Leonor, ficou encarregue da sua educação. É evidente que ele recebeu uma educação de alto nível. Sabemos que ele sabia compôr canções e escrever versos em francês e em provençal. para ser capaz de o fazer é claro que também era capaz de ler francês. Sabíamos que lia latim porque dizia com frequência piadas sobre a gramática do latim a um arcebispo de Cantuária que não tinha tantos conhecimentos como Ricardo. Desta forma, em termos de estudos tradicionais e de leituras, Ricardo encontrava-se á altura dos mais cultos príncipes europeus dos seus dias.

Pouco tempo depois de ter aprendido a andar Ricardo aprendeu a andar a cavalo. Mais tarde, as caçadas nas florestas reais permitiram-lhe adquirir as capacidades essenciais de cavalaria para um príncipe guerreiro da sua época. pouco tempo depois praticava exercícios militares em cima do seu cavalo. Ao longo de toda a sua vida foi um participante activo em torneios. Muitas vezes, estes torneios assemelhavam-se a batalhas fictícias, a campos de treino para a guerra.

A educação de qualidade que Ricardo recebeu fez nascer nele um certo amor pela música. Ele era patrono de trovadores que compunham canções de amor. na corte do pai, o jovem Ricardo ter-se-ia inspirado pelas chansons des gestes, o cancioneiro dos Francos que celebrava as conquistas heróicas dos primeiros guerreiros da época medieval. Como homem destinado a governar, Ricardo aprendeu ainda jogar xadrez, o jogo de interior preferido na sociedade europeia do século XIII. Naquela altura muitas pessoas consideravam o xadrez um jogo entre dois reis em miniatura e que o jogador aprendia a arte de bem reinar como se fosse um rei, aprendendo a gerir os seus recursos. O xadrez era visto como uma espécie de exercício sobre os desafios da vida e sobre a forma de os ultrapassar.

Ricardo tinha três irmãos que haviam sobrevivido à infância: o seu irmão mais velho Henrique, e os dois irmãos mais novos, Geoffrey e John. cada um dos quatro rapazes esperava herdar uma parte dos vastos territórios pertencentes à família angevina. mas os conflitos no seio da família eram bastante prováveis, uma vez que o pai, o rei Henrique, estava relutante em conceder-lhes autoridade real. No entanto, em 1170, reconheceu formalmente que o seu filho mais velho, conhecido por Henrique junior, herdaria o trono de Inglaterra e o centro das terras dos angevinos na França Ocidental. Dois anos mais tarde, Ricardo - segundo na linha de sucessão ao trono - tornar-se-ia Duque da Aquitânia. Aos 14 anos foram confiados ao jovem guerreiro a lança sagrada e o estandarte da Aquitânia.

O ducado da Aquitânia cobria uma área enorme de terrenos ricos e prósperos, especialmente nas zonas onde existiam portos de mar como Bordéus e La Rochelle. Eram portos a partir dos quais alguns dos produtos mais importantes comercializados na economia medieval europeia eram exportados, como o vinho e o sal. A Aquitânia era a terra ancestral de Leonor, a mãe de Ricardo. Com o seu primeiro casamento ela havia passado a província para as mãos da família de reis franceses Capetos. Quando se divorciou de Luís, o rei de França, para se casar com o rei Henrique transferiu os seus afectos e o território da Aquitânia para a família Angevina. este era o motivo antigo de contenda entre os Capetos e os Angevinos. Assim, quando Ricardo assumiu o governo da Aquitânia herdou um conflito dinástico, um conflito que dominou toda a sua vida. Quando as preces do rei de França foram atendidas com o nascimento de um filho estava montado o cenário para um conflito entre as duas famílias que iria prolongar-se pela geração de Ricardo.

O nascimento de Filipe Augustus, em 1165, foi um acontecimento muito importante na história da dinastia dos Capetos e para o futuro de Ricardo, Coração de Leão. Após muitos anos de tentativas finalmente o rei francês tivera um filho, um herdeiro masculino para perpetuar o poder e o prestígio da família. No período medieval, uma época muito militarista, um filho que soubesse manejar uma espada e comandar uma sociedade masculina era absolutamente vital. Como parte da sua formação como futuro governante dos territórios dos Angevinos, Ricardo, ainda adolescente, envolveu-se nas lutas contra os barões desobedientes nas suas terras da Aquitânia. Em 1179, Ricardo conquistou um grande castelo na Aquitânia, famoso em toda a Europa Ocidental. Apesar de se pensar que era inexpugnável acabou por ser dominado. Duas semanas após a sua chegada às portas do castelo, Ricardo conquistou-o.

No mesmo ano assistia à coroação do jovem Filipe como rei de França. Seria o rei Filipe II Augustus. O rei Capeto e a família de Ricardo, os Angevinos não estavam permanentemente em guerra. Como em qualquer outro feudo de família, neste as relações oscilavam entre conflito e reconciliação. Mas os Capetos prociravam sempre que possível criar problemas na família dos Angevinos e encontravam muitas oportunidades nas contendas internas por causa das heranças. Durante uma dessas disputas, o irmão mais velho de Ricardo morreu com uma febre. Ricardo, nessa altura com cerca de vinte anos, tornou-se herdeiro do trono de Inglaterra, sem saber que estava prestes a viver um desafio ainda maior no Oriente.

A terceira cruzada

Em 1187, verificou-se um acontecimento que modificou a vida de Ricardo. Na Palestina, o exército do rei cristão de Jerusalém foi esmagado por forças muçulmanas na Batalha de Hattin. Em três meses, Jerusalém, a cidade santa que tinha permanecido na posse dos católicos durante 80 anos, rendeu-se aos muçulmanos. Um dia, depois de ter recebido as terríveis notícias,
A terceira cruzada foi lançada em 1189. Em 1187, os exércitos muçulmanos, liderados por saladino tinham reconquistado Jerusalém. Embora de início um grande exército tenha sido reunido, a terceira cruzada acabou por se revelar um fracasso no seu objectivo principal.

O Santo Imperador Romano, Frederick I, o barba-ruiva, da Alemanha, afogou-se em circunstâncias pouco claras a caminho da Terra Sagrada. Ricardo, Coração de Leão conseguiu recapturar várias cidades costeiras mas não recapturou Jerusalém devido à escassez de recursos. Ricardo conseguiu ainda negociar um tratado de paz com Saladino que permitia aos peregrinos cristãos entrar em Jerusalém em segurança.

mais sobre a cruzada (em inglês)
mais sobre Guy de Lusignan (em inglês)
Ricardo promete liderar uma cruzada para reconquistar Jerusalém. A queda da cidade santa, o centro do mundo para os cristãos ocidentais, chocou as famílias reais da Europa. Os seus parentes encontravam-se entre os barões que lideravam os exércitos na Palestina e que foram massacrados e a perda de Jerusalém foi vista como um sinal de castigo divino. Um local como aquele, que segundo o ponto de vista da época tinha sido libertado, que tinha sido conquistado para a cristandade, tivesse perdido, era um desastre por si só, uma ofensa contra o próprio Deus.

Ricardo, como era típico da sua época partilhava da mesma opinião, mas havia outros motivos que o levaram a reagir o mais rapidamente possível. É que, mais do que ter parentes envolvidos nas cruzadas desde o início, entre os governantes de Jerusalém encontravam-se os seus primos. O rei de Jerusalém, Guy de Lusignan que era parente de Ricardo, tinha sido capturado na Batalha de Hattin. O seu reino tinha sido invadido pelo exército muçulmano. Ricardo teria que aceitar o desafio de defrontar o senhor da guerra muçulmano, saladino. mas passariam cerca de dois anos antes de ele poder partir na sua cruzada.

Rei de Inglaterra

Havia mais conflitos em França. Ricardo estava em luta com o seu pai que se recusava a confirmar a sua herança. Filipe, o rei Francês, aproveitou-se das divisões no sei da família de Ricardo. Aquilo que Filipe estava a tentar era apenas causar problemas, complicar a vida aos Angevinos para os manter permanentemente no limiar. Quando pensamos na posição de Ricardo no meio de tudo isto devemos lembrar que ele tinha lutado contra o pai durante a adolescência e que os seus irmãos haviam lutado contra ele, e que, por sua vez, também tinham lutado contra o pai. Não faltavam oportunidades para Filipe se imiscuir no assuntos de família e, ao fazê-lo, procurava constantemente desestabilizar o poder dos Angevinos.

O fim surgiu rapidamente para o rei Henrique II, pai de Ricardo. Quando os filhos de Henrique se revoltavam contra ele, era frequente terem a assistência militar do rei de França. No Verão de 1189, em 4 de Julho, Ricardo e Filipe atacam e vencem Henrique. Ricardo e Filipe levaram Henrique de volta à sua fortaleza em Chinon. No dia 6 de Julho o rei morreu, supostamente acusando o seu filho, Ricardo, de traição. Foi sepultado na Abadia de Fontevraud. Ricardo cumpriu a sua obrigação perante o túmulo do pai e assumiu rapidamente a herança. Duas semanas depois era aclamado Duque da Normandia. Atravessou o canal para Inglaterra e no dia 3 de Setembro, alguns dias antes do seu 32º aniversário foi coroado rei de Inglaterra na Abadia de Westminster.

Finalmente, Ricardo dispunha de liberdade para preparar a sua grande cruzada à Terra Santa. nessa ocasião demonstrou ser um mestre em logística e planeamento estratégico. Se no jogo do xadrez é tudo uma questão de gestão de homens, de recursos militares, de recursos económicos, de bispos e de castelos e de os manobrar acertadamente para podermos atingir os objectivos, então podemos ver que Ricardo, que ficou famoso - sobretudo nas lendas - por ter sido um cavaleiro corajoso, por ter conseguido abrir caminho através de uma multidão de soldados muçulmanos, conseguiu-o através de uma capacidade de organização excelente. Ricardo e os seus oficiais reuniram uma grande frota nos portos dos angevinos da Inglaterra e da França para transportarem homens, cavalos, armas e provisões à volta da costa espanhola e pelo mediterrâneo. Foi um esforço grandioso para a época que requeria um planeamento e uma coordenação meticulosos.

Finalmente, no dia 4 de Julho de 1190, Ricardo e Filipe partem na cruzada. Durante algum tempo a rivalidade entre os Angevinos e os Capetos foi suspensa. Concordaram em dividir o espólio da guerra de forma igual entre os dois. Sabemos que Ricardo era dedicado às cruzadas e que partiu para cumprir a sua obrigação. Filipe, pelo pouco que sabemos acerca dele, não estaria tão entusiasmado. Mas ali o que estava em causa era o prestígio. Quando um partia o outro seguramente devia fazê-lo também. Algum tempo antes nesse ano foi descoberto um túmulo em Glastonbury [mais informação sobre Glastonbury em inglês] que continha o que se supunha na altura serem os restos mortais do rei Artur. A lenda diz que foi aí que foi encontrada a Excalibur, a lendária espada do rei Artur. Levando consigo a suposta lendária Excalibur na cruzada, Ricardo associava-se á imagem do guerreiro heróico.


Distanciamento agrava-se entre Angevinos e Capetos


Ricardo e Filipe acordaram utilizar a ilha da Sicília como local para fazerem uma pausa na viagem até à Terra Santa. Ricardo pretendeu resolver alguns assuntos de família enquanto na ilha. Tancredo, o rei da Sicília devia-lhe dinheiro. Ricardo parece ter defendido os seus direitos a essa soma com mais do que mera agressividade. Também não se encontrava em bons termos com o exército de Filipe e cada vez antagonizava mais Filipe. Desta estada na Sicília ficam os relatos de freuqnetes e graves desacatos, desordens e violência por parte de Ricardo e dos seus homens. Durante meses, Ricardo tinha planeado cuidadosamente um casamento estratégico que protegeria os seus direitos da ameaça de um antigo inimigo: o Conde de Tulouse, que não acompanhara a cruzada. Era previsível que enquanto Ricardo se encontrava na cruzada o Conde de Tulouse atacaria a Aquitânia. Assim, por forma a assegurar que a Aquitânia se mantém segura enquanto se encontra fora, Ricardo procura um aliado que o ajude a proteger o seu ducado. Ricardo procura, por isso, casar com Berengária de Navarra. Tem que conseguir um casamento diplomático, calculado diligentemente por forma a fazer face à ameaça daquele conde que permanecia no seu território.

Filipe não ficou nada bem impressionado. Durante anos, o rei francês tentara persuadir os Angevinos a honrar um compromisso de que Ricardo casaria com Alice, a irmã de Filipe. O casamento de Ricardo com Berengária passou por cima de um compromisso assumido através de um tratado 20 anos antes. Ao quebrar tal compromisso Ricardo abandonava qualquer expectativa de amizade com os Capetos. Num rompante de fúria, Filipe abandonou a Sicília em direcção à Terra Santa. Ricardo partiu imediatamente a seguir acompanhado da sua futura mulher. Realizou ainda um desvio a Chipre. Revoltado contra o governante da ilha, que tinha realizado um pacto com os muçulmanos, Ricardo efectuou uma campanha relâmpago conquistando a ilha em duas semanas. Em seguida casou com Berengária na igreja do Castelo de Limmasol.

Ricardo chegou por fim à Palestina. Filipe já havia chegado alguns meses antes. Na costa, em Acre [mais informações sobre Acre em inglês], as forças dos cruzados estavam a atacar uma guarnição muçulmana. Mas, por sua vez, encontravam-se sob um forte ataque do exército de Saladino, que procurava levantar o cerco. esta situação de tensão piorou com as divisões no seio das fileiras dos cruzados. Entre os cruzados havia dois contendores pelo reino de Jerusalém. Ricardo apoiava o seu familiar, Guy de Lusignan, contra o primo de Filipe, Conrad de Monferrat. Foi efectuada uma pausa na disputa política enquanto os cruzados realizavam os preparativos finais para dominar a cidade. Entretanto, Ricardo adoeceu com escorbuto o que fez com que o seu cabelo e unhas caíssem. Apesar disso insistiu em comandar o cerco da cidade.

Em Julho de 1191, a guarnição rendeu-se. Ricardo e Filipe tinham conseguido a sua primeira vitória. Mas uma terceira potência europeia, os Austríacos, tentou reivindicar uma parte dos prémios. Ricardo e Filipe já haviam concordado em dividir entre os dois o que tinham conquistado. Eles foram os líderes do cerco de Acre, por forma a que o espólio de Acre fosse, de facto, dividido entre os dois. Depois da conquista o duque austríaco, Leopoldo, coloca o seu estandarte nas ameias da fortaleza da cidade e reivindica uma parte de Acre por direito de conquista. Os soldados ingleses retiram o estandarte do Duque Leopoldo da Áustria mas este vingar-se-á de Ricardo mais tarde. Filipe era um hipocondríaco e nunca tinha sido feliz com as difíceis condições do acampamento das cruzadas. Decidiu então dirigir-se para casa prometendo não atacar as terras de Ricardo enquanto estivesse em cruzada.

Nos termos da rendição de Acre, Ricardo deveria receber um prémio elevado das mãos do líder muçulmano, Saladino, em troca das vidas dos seus prisioneiros. O prazo limite foi ultrapassado e Ricardo encontrou-se perante um dilema. As pessoas começavam a desconfiar que Saladino estava a tentar reter Ricardo em Acre, prendê-lo a Acre. Ricardo, por seu lado, pretende prosseguir a sua campanha e partir em direcção a Jerusalém. Poderia partir deixando cerca de 2.700 prisioneiros em Acre sem lhes dar alimento nem os guardar? A solução de Ricardo foi implacável. mandou executar todos os 2.700 prisioneiros muçulmanos. Foi um acto de uma crueldade impiedosa que os historiadores modernos condenam, apesar de alguns defenderem que Ricardo estava a agir em conformidade com os valores da sua época. Naquele tempo, no contexto da Terceira Cruzada, a Igreja pregava que as vidas dos muçulmanos não deviam ser poupadas, eram infiéis que já estavam condenados á partida ao inferno pelas suas crenças.

Depois de se libertar de um fardo indesejado e agora que era o líder inquestionado dos cruzados, Ricardo dirigiu-se para Sul para reconquistar a Cidade Santa de Jerusalém. Durante a viagem para Sul, Ricardo demonstrou as suas capacidades excepcionais como comandante militar. Decidiu avançar apenas á velocidade das passadas dos soldados de infantaria ao longo de todo o caminho sob um calor intenso de um Verão mediterrânico sendo frequentes vezes provocados pelas tropas de Saladino. estes aproximavam-se a cavalo, atiravam as suas setas e retiravam-se rapidamente. iam buscar mais setas e voltavam à carga novamente e assim sucessivamente, dia após dia, o exército de cruzados continuava a avançar. este avanço, dadas as condições em que se fazia, só foi possível porque a frota os foi acompanhando ao longo da costa. Assim, os feridos e doentes eram levados para bordo. recebiam também reforços para que as tropas pudessem suportar o esforço desta incrível viagem.

Saladino foi finalmente obrigado a submeter o seu exército muçulmano ante a certeza de uma batalha em grande escala em Arsuf. Esta foi uma excelente oportunidade para Ricardo utilizar a grande arma dos cruzados, o temível ataque de cavalaria. O sucesso dependia da temporização do ataque para que se obtivesse o efeito máximo. O domínio de Ricardo desta força devastadora trouxe a vitória aos cruzados. Em Setembro de 1191, três meses depois de ter chegado à Terra Santa pela primeira vez, Ricardo conquistou a cidade de Jaffa, situada mais a Sul, na costa, e passou o ano sguinte a defender o seu domínio no Sul da Palestina. por essa altura já se tinha tornado famoso entre os muçulmanos. Uma citação de um texto muçulmano: "Este Senhor é maldito. Para atingir os seus objectivos, utliza por vezes palavras brandas e noutras actos violentos. Só Deus pode salvar-nos da sua malícia. jamais tivemos que enfrentar um inimigo tão subtil ou audaz".

Em duas ocasiões Ricardo esteve perto de Jerusalém mas a sua posição nunca foi suficientemente forte para dominar a cidade. As suas linhas de abastecimento para a costa encontravam-se extremamente vulneráveis ao perigo de um ataque muçulmano. A lenda conta que numa determinada ocasião ele avistou a Cidade Santa e tapou os olhos para evitar a vergonha de ter visto a cidade de Jerusalém e não a ter reconquistado.

O regresso à Europa

Em Abril de 1192, recebeu notícias preocupantes de Inglaterra. O seu irmão mais novo, John, e Filipe, rei de França, estavam a causar problemas e se uma conspiração fosse permitida era legítimo esperar que, enquanto ele estava na Palestina, toda a Inglaterra, toda a Normandia, talvez também Anjou, seriam perdidas. Ele tinha que regressar.

Na altura em que Ricardo recebeu as más notícias já se encontrava em negociações com os muçulmanos. As tréguas foram negociadas em setembro de 1192. partes da costa permaneceriam em poder dos cristãos e os peregrinos cristãos poderiam visitar Jerusalém. Os feitos de Ricardo, apesar de a cruzada não ter atingido o seu objectivo máximo, foram imensos. Ele sentia-se profundamente mal por não ter podido reconquistar Jerusalém. A sua conquista mais importante foi a recuperação da costa. A frota de galés egípcia entretanto estava confinada ao porto e não podia fazer nada. A conquista de Chipre por Ricardo contribui igualmente para fornecer ao reino de Jerusalém uma eficiente linha de comunicação com o Ocidente.

Antes de Ricardo regressar à Europa, a disputa permanente sobre quem seria o governante do reino de Jerusalém sofreu uma viragem dramática. Ricardo tinha finalmente concordado com a nomeação do seu inimigo político, Conrad de Montferrat. Apesar de ser um combatente respeitado, Conrad tinha sido inimigo de Ricardo durante décadas. Na noite de 28 de Abril de 1192, Conrad foi assassinado quando voltava a casa depois de um jantar. Não havia provas directas do envolvimento de Ricardo mas a hora a que fora cometido o assassínio era suspeita. Ricardo encontrava-se numa situação em que um inimigo seu iria governar a Palestina e as suas outras amplas conquistas.O facto de um inimigo dinástico do rei de Inglaterra governar a Palestina pode parecer algo bastante distante actualmente uma vez que a Terra Santa ficava a mais de 3.000Km das terras de Ricardo mas isto não tem em conta o significado que a Palestina tinha para as pessoas na época. Seria uma grande humilhação para o trono inglês e para os esforços diplomáticos ingleses, se se viesse a concretizar.

A detenção


Assim, Ricardo abandonou a Palestina envolto numa nuvem de suspeitas. partiu do porto de Acre em outubro e os cronistas contemporâneos relatam que os ventos o afastaram da sua rota e separaram da sua frota e que, após repelir os ataques de piratas, o seu barco naufragou na costa norte adriática. Na prática encontrava-se em território inimigo. para chegar a Inglaterra teria que atravessar terras que pertenciam aos familiares de Conrad que tinha sido assassinado e, segundo a suspeita geral, por ele próprio. Conrad era primo de Leopoldo da Áustria e do Imperador Henrique VI da Alemanha, tendo também laços familiares com Filipe de França. Os Montferrats eram de facto uma família muito importante.

Como cruzados, Ricardo e os seus colegas teriam estado sob a protecção da Igreja mas disfarçaram-se de mercadores para evitar que descobrissem as suas identidades. Porque será que ele decide viajar disfarçado depois de chegar a terra? À primeira vista não faz sentido nenhum. Este facto só faz sentido se ele soubesse que estaria a viajar por uma Europa revoltada com razão pelo assassinato de Conrad e que os familiares deste o iriam perseguir. ou seja, ou Ricardo seria culpado do assassinato de Conrad ou tinha sido habilmente inculpado desse facto. Os acontecimentos, porém parecem indicar que Ricardo seria o assassino de Conrad. De qualquer forma, Ricardo quase conseguiu escapar mas ao chegar a Viena acabou por ser capturado por tropas austríacas.

Ricardo encontrava-se, assim, nas mãos dos familiares de Conrad, mais especificamente de Leopoldo da Áustria. O homem cujo estandarte tinha sido retirado pelos homens de Ricardo após a conquista de Acre. Ricardo foi levado para o castelo isolado de Durnstein, nas margens do Danúbio. O herói das cruzadas passou a ser um refém para pagar um regaste de um rei. A notícia da detenção de Ricardo por Leopoldo da Áustrai demorou vários meses a chegar a Inglaterra (segundo a lenda de Londel, um trovador andava á procura dele viajando por toda a Alemanha a cantar o primeiro verso de uma canção que o seu amo real reconheceria. Após algumas semanas de busca finalmente encontrava-o).

Leopoldo tinha consciência do valor do seu prisioneiro real e chegou rapidamente a um acordo com Henrique VI, imperador da Alemanha. vender Ricardo contra uma parte do dinheiro do resgate. Ricardo esteve presente num julgamento perante a corte imperial acusado do assassínio de Conrad de Montferrat na Palestina. Apesar de Ricardo ter conseguido influenciar o imperador com um forte discurso, foi mantido preso aguardando o pagamento de um enorme resgate. As exigências do imperador Henrique VI em relação ao resgate de Ricardo eram de 150.000 marcos, uma quantia astronómica para aquela época. por fim, a administração inglesa pagou "apenas" 100.000 marcos. Esta quantia convertida em libras dava mais de 66.000 libras, mais de três vezes a receita anual do orçamento real. o esforço que resultou deste resgate para a economia inglesa foi enorme e também para os súbditos de Ricardo. Não é de admirar que existam bastantes reclamações pelas dificuldades económicas que isto implicava. Este esforço veio a reflectir-se também na relação dos súbditos ingleses com John, o irmão de Ricardo, que nas lendas aparece como um rei despótico que aumentava constantemente os impostos e explorava os súbditos ingleses em proveito próprio.

Ricardo permaneceu preso enquanto os seus oficiais reuniam o resgate. Enquanto Ricardo é mantido em cativeiro, o seu irmão João luta contra o antigo rival de Ricardo, o rei de França. O que João desejava realmente era herdar a coroa de Inglaterra, usurpar o que pertencia ao irmão, tanto na Inglaterra como nas demais terras dos Angevinos. Para isso contava com a ajuda de Filipe. Ricardo era mais do que um grande guerreiro tendo-se revelado um especialista em estratégia. Mesmo no cativeiro servia-se das suas habilidades diplomáticas para combater a ameaça dos seus inimigos. Em muitos aspectos ele tinha que continuar a manipular o tabuleiro do xadrez político europeu enquanto estava na prisão porque era do interesse de Filipe e de João manterem-no preso e estavam preparados para pagar uma enorme quantia em dinheiro ao imperador para manter Ricardo preso. O que ele tinha que fazer era conseguir diminuir as relações do imperador com o lado oposto e o que ele acabaria por conseguir fazer foi reunir uma aliança dos príncipes alemães para convencerem o imperador de que ele tinha razão. É evidente que o imperador só veria a razão se esta lhe trouxesse alguma vantagem financeira.

A lenda de Robin


Finalmente, na Primavera de 1194, Ricardo foi libertado depois de mais de um ano de cativeiro. Dirigiu-se para Inglaterra lançando o pânico no seio dos apoiantes de João. Diz-se que um dos barões que se tinha revoltado morreu de susto ao ouvir que Ricardo havia sido libertado. Um dos primeiros actos de Ricardo foi reforçar a sua autoridade real através de uma segunda coroação, desta feita na Catedral de Winchester. Ricardo foi apelidado de rei ausente, deixando o país num limbo sem uma liderança forte. Esta perspectiva tem origem nas lendas que surgiram vários séculos após a sua morte, principalmente a ligação entre Ricardo e outro herói inglês, Robin dos Bosques.

Na lenda de Ricardo, a coisa mais importante é a sua imagem nas cruzadas e o seu duelo com Saladino, que inevitavelmente concentrou sobre ele as atenções num raio de muitos quilómetros de distância. O povo inglês precisava de alguém que tomasse conta dele na ausência do rei e assim surge a lenda de Robin dos Bosques. É uma lenda que, de certa forma, mostra Robin a fazer aquilo que o rei ausente falha em fazer. A imagem de Ricardo o rei ausente não tem em conta o lugar de Inglaterra nas terras de Ricardo. O maior desafio á sua autoridade residia no ocidente de França.

Últimos anos e morte


Ricardo deixou a Inglaterra em Maio de 1194 desconhecendo que nunca voltaria a ver o país onde nascera. Estava então pronto para defrontar Filipe II Augustus, o rei de França, que tinha invadido uma parte do território de Ricardo quando ele estava preso. tratava-se de uma guerra de famílias cuja intenção era minar o poder do adversário, dominar o seu território, obter pequenos ganhos que poderiam depois vir a ser bastante aumentados. Do ponto de vista de Filipe, como rei de França e governante de Paris, o pormenor mais aborrecido era o facto de o grande rio que liga Paris ao mar, atravessar a Normandia. Filipe pretendia dominar o Vale do Sena e essa parte da Normandia. Pretendia conquistar Ruão. Foi nesta área do Vale do Sena que decorreu o maior conflito, que implicou uma troca - quase a um ritmo semanal - do domínio dos castelos.

Foi nesse local que Ricardo decidiu construir a sua grande obra-prima de arquitectura militar: Chateau Gallaird. Este enorme castelo bloqueava a rota que Filipe teria que seguir se pretendesse conquistar Ruão e o resto do Vale do Sena. Servia ainda de base a partir da qual Ricardo poderia recuperar as terras que tinha perdido. A luta entre Ricardo e Filipe prolongou-se por mais cinco anos. Cerca de Março de 1199, Ricardo encontrava-se numa posição forte em relação ao seu antigo rival. Foram negociadas tréguas que garantiam mais um ano de paz. Ricardo dirigiu-se então para a sua adorada Aquitânia. Alguns historiadores pensam que para dominar os barões insubordinados, outros afirmam que procurava um tesouro antigo.

Segundo uma das versões Ricardo teria seguido para Sul porque fora informado da existência de um tesouro maravilhoso que fora descoberto nas terras do Senhor de Limousin. Segundo outra versão, Ricardo partiu para Sul porque o visconde de Limoges e o conde de Angrouème estavam a organizar uma revolta.Tinha sido precisamente contra estes dois grandes senhores que o duque da Aquitânia, no passado, tinha tido que pôr em prática todos os seus esforços no sentido de os governar mantendo o controlo sobre eles. Filipe, no contexto da sua inimizade contra a casa angevina, tinha instigado insistentemente o visconde de Limoges e o conde de Angrouème para desfazerem os laços de vassalagem com o duque da Aquitânia e para se aliarem a ele.

Ricardo lançou um ataque contra os rebeldes que estavam detidos num castelo de Châlus-Charbrol em Limousin. Ricardo, como era seu hábito, participava pessoalmente na condução da guerra. Um certo dia saíu para inspeccionar as paredes do castelo. Aproximou-se o suficiente para estar ao alcance de um besteiro que se encontrava numa das ameias do castelo. Pierre Basile era o besteiro que disparou contra Ricardo, um dos únicos dois cavaleiros que defendiam o castelo. Basile disparou e Ricardo foi ferido num ombro. Os médicos foram chamados com urgência e fizeram o seu melhor para remover a flecha mas fizeram um mau trabalho pois a ferida acabaria por gangrenar.

Nestas ocasiões, como é comum, surgiram boatos de que talvez esta intervenção inepta dos médicos fosse uma garantia para alguém de que o duque da Aquitânia ia morrer. É evidente que a morte de um rei num local tão distante, num local quase desconhecido, numa situação que nem sequer era a de uma guerra muito importante entre reis ou, pelo menos, não era vista como tal leva a concluir que os boatos sobre qualquer tipo de conspiração seriam infundados. A maior parte das pessoas foi levada a concluir que Ricardo morreu porque desobedecera aos médicos. Não descansava aquando da recuperação e os cuidados com a higiene podem também ter sido deficientes. Consta também que na sua convalescença pedia que lhe trouxessem mulheres aos seus aposentos. Sabemos que há uma outra versão dos seus últimos dias em que Ricardo teria insistido para que trouxessem perante ele o besteiro que disparou a flecha que o ferira. Quando o homem, que não podia esperar mais nada senão a morte, surgiu ao lado da cama do rei sem qualquer receio pelo acto que tinha cometido, Ricardo admirou a sua atitude e ordenou que a sua vida fosse poupada. O desejo do rei foi mantido apenas enquanto se manteve vivo. Após a morte de Ricardo, Mercadier, um guerreiro ao serviço de Ricardo, ordenou que Basile fosse esfolado vivo e posteriormente enforcado.

Quando se tornou evidente que a gangrena se tinha espalhado e que a morte de Ricardo se aproximava, foram-lhe dados os sacramentos finais. A sua mãe, Leonor, estava presente. O seu filho preferido, um rei no esplendor das suas capacidades morreu com 42 anos. O corpo de Ricardo foi levado para a Abadia de Fontevraud e foi sepultado aos pés do seu pai, o rei Henrique. Assim, reconciliaram-se na morte. Mas o casamento de Ricardo não tinha dado origem a nenhum herdeiro. A sucessão passou para o seu irmão João, aquele que tinha traído Ricardo quando ele estava preso. Passado 5 anos, joão tinha perdido a maior parte da herança angevina para o antigo inimigo de Ricardo, o rei de França. Assim, a estrutura política e o legado que Ricardo tinha conseguido com tanta ferocidade e dificuldade desmornou-se rapidamente nas mãos de João, em quem ninguém confiava à partida.

Numa época que celebrava as proezas dos seus guerreiros, os cavaleiros da Idade Média, Ricardo em breve se encontraria nas fileiras dos principais heróis lendários. Torna-se muito rapidamente uma figura lendária durante a sua vida mas conseguiu sê-lo também depois da sua morte e acabaria por ser visto como o rei modelo: prudente, inteligente, um grande guerreiro e generoso. Mesmo que o não tenha sido foi essa a imagem que acabou por perdurar e seria assim que ficaria lembrado pelos Homens.

domingo, 23 de abril de 2017

A Casa de Bragança

O nome que domina a Batalha de Aljubarrota é D. Nuno Álvares Pereira. É ele quem planeia a batalha e quem comanda a vanguarda, é ele quem atrai os castelhanos à derrota. Existe consenso entre os historiadores da época e os actuais: a grande personalidade dessa batalha é o condestável D. Nuno Álvares Pereira.

Quem reinava em Portugal na altura da batalha era El-rei D. João I. D. João I tinha sido Mestre de Avis (ou seja, o chefe, o comandante, da Ordem monástico-militar que tinha, nessa altura, a sua sede em Avis) antes da sua coroação. Era um filho bastardo do rei D. Pedro e tinha sido desde criança Mestre daquela Ordem militar o que tinha sido uma maneira de lhe dar uma renda, uma forma de viver. Mais tarde liderou uma revolta popular quando morre o rei D. Fernando e é isso que acaba por o levar ao trono. Seria aclamado rei de Portugal nas cortes de Coimbra. A partir do momento em que passa a ser rei de Portugal deixa de ser Mestre de Avis.

Foi exactamente por causa do papel que Nuno Álvares tomou na Batalha de Aljubarrota que o rei lhe deu recompensas enormes. Nessa altura havia em Portugal três condados, isto é, três regiões administradas por condes: o condado de Barcelos, o condado de Ourém e o de Arraiolos. O rei, agradecido pelo papel desempenhado por Nuno Álvares na sua ascensão ao trono (ver crónicas de Fernão Lopes), pelo seu papel na Batalha de Aljubarrota e na defesa anterior do reino contras as tropas do rei de Castela e pela sua amizade e confiança que nele depositava, fê-lo conde de Ourém, de Barcelos e conde de Arraiolos. Deu-lhe todos os três condados existentes no país. Para além disso deu-lhe dezenas de vilas tornando Nuno Álvares mais rico do que o próprio rei.

Nuno Álvares viria a casar com uma fidalga do Norte do país, da zona de Trás-Os-Montes e teve uma filha do seu casamento: D. Beatriz – ou Brites, como se dizia na época. Essa filha, sendo filha única, herdou toda a fortuna do Condestável.

O rei, D. João I, tinha um filho fora do casamento com uma rapariga alentejana chamada Inês Pires, filha de um homem de Veiros de quem ninguém sabe o nome tendo passado para a história com o nome de Barbadão. A filha do Barbadão teve um relacionamento com o Mestre da Ordem de Avis e desse relacionamento nasce um rapaz que se chamou Afonso e que foi viver para a cidade de Leiria. Foi apenas aos vinte anos que o pai o perfilha, legitimando-o como seu filho no ano de 1400. No ano seguinte, 1401, casa esse seu filho com a filha do Condestável. D. João I consegue assim habilmente que o maior conjunto de bens do país (vilas, castelos, condados, zonas agrícolas e de caça, rios, etc.) acabe por ficar na posse do seu próprio filho. E é assim que nasce a Casa de Bragança.

Descendência do Condestável D. Nuno Álvares Pereira

Quando esse filho de D. João I, D. Afonso, casou com a filha de Nuno Álvares, este deu ao genro um dos três condados fazendo-o conde de Barcelos. Ainda hoje em Barcelos está o palácio que esse conde D. Afonso mandou fazer apesar de apenas existir parte dele (no distrito chegaram a começar a demolir o palácio mas de Lisboa foi enviada ordem para se parar com a obra).

Do casamento de D. Afonso com a filha de Nuno Álvares nascem alguns filhos. O mais velho é D. Afonso. Este D. Afonso está sepultado em Ourém sozinho porque nunca chegou a casar e morreu mesmo antes do pai. Daí que quem vem a suceder ao pai é o seu filho mais novo, D. Fernando.

Quando Nuno Álvares Pereira já estava velho deu o condado de Ourém ao neto D. Afonso e Arraiolos ao neto D. Fernando. D. Fernando mais tarde viria a ser feito marquês de Vila Viçosa e passou a viver no velho castelo de Vila Viçosa. Ainda hoje o castelo é um monumento imponente e é o antepassado do palácio de Vila Viçosa. Quando este D. Fernando sucede ao pai já este tem o título de duque de Bragança e não só de conde de Barcelos.

D. João I, depois de casar com D. Filipa de Lencastre teve vários filhos: o futuro rei D. Duarte, o infante D. Pedro das sete partidas, o infante D. Henrique o infante das navegações, o infante D. João que viria a viver em Palmela como Mestre de Santiago, o infante D. Fernando o mártir de Fez e D. Isabel que foi duquesa de Borgonha e que teve uma intervenção significativa na história da Europa (é esta a ínclita geração).

Todos os seus filhos foram feitos duques excepto aquele que tinha tido fora do casamento, o primogénito que era filho da Inês Pires e neto do Barbadão. O que, de alguma forma, era injusto uma vez que além de primogénito D. Afonso era tão filho de D. João como todos os outros.

Depois de morrer D. Duarte, sucede-lhe na regência o infante D. Pedro. Em 1442, o infante D. Pedro numa atitude fraternal faz o irmão D. Afonso duque. E fá-lo duque de Bragança dando-lhe toda a zona de Bragança incluindo o castelo construído por D. Dinis. Assim, todos os filhos legítimos eram todos duques de cidades (D. Pedro era duque de Coimbra, o infante D. Henrique era duque de Viseu, D. Fernando de Beja) e D. Afonso era duque de uma vila pois Bragança, ao tempo, era ainda uma vila. Mais tarde, no tempo de D. Afonso V, Bragança é elevada a cidade para ter tanta dignidade real como todos os outros ducados.

Bragança é elevada à categoria de cidade em homenagem ao príncipe D. Fernando, o segundo duque de Bragança.

O segundo duque de Bragança ficou na história como uma pessoa de grande categoria. Intervém, assumindo um papel apaziguador,  num conflito trágico entre o seu pai, D. Afonso, e o infante D. Pedro. Do conflito viria a resultar a morte deste último. D. Fernando serve em Ceuta e, quando morre, deixa tudo quanto tem a um filho que também se chamava Fernando. Era também um bom administrador. Foi adquirindo novas terras e as ajudas que prestou a Afonso V, o Africano (cognome derivado das conquistas africanas), renderam-lhe também muitas ofertas por parte da casa real.

Depois da morte de D. Afonso V, sucede-lhe D. João II, o Príncipe Perfeito. D. João II encontra-se numa posição incómoda para um rei. É que, apesar de ele ser o monarca, são os duques de Bragança que detêm quase tudo no país. Para mais, os duques são orgulhosos e por vezes assumem atitudes de quem se considera praticamente rei. Num certo paço do duque de Bragança encontram-se cerca de 500 fidalgos ao serviço do duque. Em caso de guerra os duques de Bragança podem levantar exércitos de milhares de homens. O rei acha esta situação bastante desconfortável uma vez que, no país quem tem o maior poder económico e militar é o duque de Bragança. É isto que vai originar a morte do filho deste D. Fernando, o D. Fernando II.

D. Fernando II é acusado pelo rei D. João II, de quem era primo e cunhado, de estar a conspirar para conseguir ser rei. Até hoje, nem nos arquivos portugueses nem nos arquivos espanhóis apareceu qualquer documento que possa convencer-nos de que tal conspiração tenha de facto existido. Os documentos existentes indicam até o contrário, que tudo não terá passado de um plano arquitectado pelo Príncipe Perfeito para destruir o poder do chefe da nobreza portuguesa.

D. Fernando II viria a ser julgado num julgamento preparado, condenado à morte, executado e é extinta a Casa de Bragança. Todos os bens dos antigos duques da Casa de Bragança são distribuídos pelos nobres inimigos dos duques e uma boa parte fica para a coroa de Portugal. Isto acontece em 1483 e durante 17 anos não houve Casa de Bragança. A duquesa, viúva, teve que fugir de Portugal levando o seu filho de 4 anos, D. Jaime, para Castela onde seriam muito bem acolhidos e tratados.

Quando morre D. João II em condições misteriosas (naquela altura a impressão geral é que se tratara de um homicídio) sucede-lhe o rei D. Manuel que fazia parte da Alta Nobreza e que era muito ligado aos antigos duques de Bragança. D. Manuel, em 1500, reconstitui a Casa de Bragança. Volta a haver duque de Bragança e é precisamente o menino que tinha fugido com a mãe para Castela: D. Jaime.

D. Jaime, apesar de inteligente era um homem desequilibrado devido à vida de foragido e desequilíbrio familiar que tinha tido o que viria a ocasionar uma tragédia em Vila Viçosa. Um dia teve uma suspeita sem qualquer razão acerca da fidelidade da mulher e à punhalada põe-lhe termo à vida. Manda também matar um rapaz alcoforado sem idade para ter espada (um adolescente de 14 ou 15 anos) que dizia ser o amante da duquesa.

D. Manuel envia juízes a Bragança fazer uma devassa (ou seja, saber o que se tinha passado). Os juízes, depois de terem andado por Bragança nas suas investigações dizem que nada ficou provado. Testemunham de facto o enterro da duquesa e o desaparecimento do rapaz (provavelmente queimado) mas afirmam não saber o que se passou e não ter provas de homicídio nenhum. Isto passa-se em 1512 ou 1513. No ano seguinte, o duque D. Jaime organiza uma expedição militar com 7.000 homens para conquistar uma praça do Norte de África e deixou de se falar do assunto da duquesa e do rapaz mortos. Mais tarde, este 4º duque de Bragança volta a casar mas não quer já viver no palácio velho dizendo que lhe aparecia lá o fantasma do pai, o duque degolado. Manda por isso fazer um novo palácio. Ainda hoje existe esse palácio, ficando á direita do palácio de Vila Viçosa.

O 5º duque, D. Teodósio, não quis, por sua vez, viver no palácio que seu pai, D. Jaime, tinha construído pois via, no palácio novo, o fantasma da mãe e ordena que se faça um novo palácio que é hoje o grande palácio ducal de Vila Viçosa. Foi aí que viriam a viver todos os outros duques.

Os duques importantes para nós, são o filho de D. Jaime, D. Teodósio, construtor do palácio. O duque João, cuja mulher quis ser rainha de Portugal, por alturas do ano de 1580. Depois há outro Teodósio e de novo outro João. Com esses dois Teodósios há uma história curiosa Há um soneto de Camões dedicado a um deles, É um soneto que começa “os reinos e os impérios poderosos...”. Trata-se de um soneto algo áspero, não muito agradável esteticamente. Os historiadores defenderam que esse soneto deveria ter sido feito por Camões quando este era ainda muito novo e ainda não era o poeta de dimensão que viria a ser e assim esse soneto deveria ter sido feito ao primeiro D. Teodósio. Não foi. Foi ao segundo que era neto do primeiro e o soneto não é bom porque o Camões não era novo, era velho. E é evidente que o soneto é feito ao segundo porque não diz que seja ao duque de Bragança. O soneto é muito claro. Chama-lhe “grão sucessor e novo herdeiro”, logo herdeiro do ducado de Bragança. Mais, diz que aquele Teodósio praticou feitos iguais ao sangue (o sangue era considerado ilustre) mas maiores que a idade (ou seja, feitos impróprios, maiores, que a sua idade) o que tem a ver com o seguinte: o duque D. João não quis ir à Batalha de Alcácer-Quibir mas enviou o filho que tinha apenas 10 anos. Nessa batalha D. Teodósio foi aprisionado numa carruagem pelos mouros e mais tarde os Filipes de Espanha resgataram-no. Em Portugal disse-se que o menino tinha feitos heróicos, feitos “iguais ao sangue, mas maiores que a idade”.

Este segundo Teodósio a quem Camões fez o soneto veio a ser o pai do duque D. João que seria escolhido para rei de Portugal como rei D. João IV. É o rei da Restauração, o rei cuja estátua equestre está em Vila Viçosa. E, a partir daí, os duques de Bragança foram sempre os filhos mais velhos dos reis de Portugal. O título ainda hoje existe. Ainda hoje há um duque de Bragança que já não é o dono da Casa de Bragança (que é propriedade do Estado através de uma fundação) mas o título continua a existir e é reconhecido em todo o mundo.

A Fundação Casa de Bragança mantém todas as lembranças desses períodos da nossa história. Quem quiser conhecer a história dos duques de Bragança deve começar pelo castelo de Bragança, em Trás-Os-Montes e acabar no palácio de Vila Viçosa no Alentejo.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Representações de Embarcações Portuguesas dos Séculos XV e XVI

Abaixo é possível ver como têm sido representadas as embarcações portguesas dos séculos XV e XVI.
Na imagem seguinte vêm-se desenhos de caravelas portuguesas nas imediações da costa ocidental africana onde é possível distinguir a característica vela latina (1)

Portulano de Juan de la Cosa (Ano de 1500)

O desenho seguinte foi registado no porto de Valença. Representa uma caravela redonda (1).

No "Livro das Fortalezas de El-Rei D. Manuel" de Duarte Darmas (ínicio séc. XVI)

Carta de Juan de la Cosa (1500)



Carta de Juan de la Cosa (1500)

Nau portuguesa em quadro an Igreja Madre de Deus, Lisboa(2).


(1) in Navegação de Lisboa à Ilha de São Tomé Escrita por um Piloto Portguês, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1989, p. 13.
(2) desenho de Joaquim Melo, in Navegação de Lisboa à Ilha de São Tomé Escrita por um Piloto Portguês, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1989, p. 25.

Vasco da Gama

Vasco da Gama é uma das figuras mais relevantes da história de Portugal e um dos grandes vultos da história europeia no início dos tempos modernos.

Nenhuma terra portuguesa ficou tão ligada a Vasco da Gama como Sines da mesma forma como Vasco da Gama não se ligou a nenhuma outra terra como a Sines. Ele tinha Sines na alma. Toda a vida, Vasco da Gama teve um sonho: ser conde de Sines. Acaba por não chegar a realizar esse sonho mas isso indica-nos que Sines era uma terra que deveria conhecer desde a infância. O alcaide do castelo de Sines era pai de Vasco da Gama e este terá nascido provavelmente no próprio castelo. Apesar de não haver nenhum documento que relate o seu nascimento (uma vez que na época não era dado qualquer relevo ao nascimento das pessoas) as probabilidades do nascimento se ter verificado no castelo são muito elevadas. Conhecem-se perfeitamente as circunstâncias da morte de Vasco da Gama mas quanto ao nascimento não há dados fiáveis. Mesmo quanto à sua data de nascimento não existe nenhum documento ou qualquer indício que possa dar uma forte evidência de uma data. Sabe-se apenas que nasceu entre 1465 e 1475 e que era filho de Estevão da Gama, o alcaide do castelo de Sines, e era o segundo filho, tendo um irmão mais velho chamado Paulo da Gama.

Um dos problemas curiosos que os historiadores tiveram que resolver era o porquê de ser o irmão mais novo a comandar a expedição que descobriu o caminho marítimo para a Índia, sendo que, naquela época, era norma que fosse o filho varão a assumir as maiores responsabilidades e continuar as tarefas e negócios familiares. A hipótese do Prof. José Hermano Saraiva é de que Vasco da Gama seria o irmão mais forte, mais vigoroso e com maior resistência física. Paulo da Gama, ao que tudo indica não seria uma pessoa particularmente resistente, tendo sido sempre de saúde frágil. Talvez por isso, D. Manuel tenha confiado o comando da armada ao irmão mais novo, ou, mais provavelmente, aos dois irmãos. No entanto, seria Vasco da Gama a impôr-se como o mais enérgico e capaz de suportar fisicamente a empresa. Aliás, o irmão mais velho acabará mesmo por morrer na viagem de regresso da Índia. É assim, compreensível que Vasco da Gama tenha ficado conhecido como o único comandante da viagem à Índia.

Em Sines, é já tradição há muito tempo que Vasco da Gama tenha de facto nascido no castelo da vila. O castelo foi construído no reinado de D. Pedro I por alturas da morte de Inês de Castro (v. Crónicas de Fernão Lopes), tendo uma arquitectura simples que indica funções quase exclusivamente militares. Sem dúvida que, sendo Vasco da Gama filho do alcaide do castelo terá andado no castelo e nas zonas circundantes. Foi também neste castelo que se fez uma exposição, em 1998, sobre Vasco da Gama: a exposição "Vasco da Gama e a sua época". A exposição tinha um núcleo no castelo e outro na igreja das Salvas, uma igreja mandada reconstruir pelo próprio Vasco da Gama quando já era vice-rei da Índia.

Estevão da Gama era um homem forte e corajoso e da confiança do rei D. João II. Apesar de se saber que a família Gama teria prestado grandes e muitos serviços à coroa apenas há registos de um pois era aquele que era mais contado e que chegou até aos nossos dias. Numa determinada altura D. João II teve necessidade de um agente seu numa cidade do Norte de África que desejava conquistar. Terá então enviado Estevão da Gama que fez a viagem miseravelmente vestido de vendedor de figos secos. Como vendedor de figos secos foi fácil a Estevão da Gama circular com a sua canasta de figos pelas ruas e praças da cidade em que o rei estava interessado e conseguir assim as informações geográficas - físicas e humanas - que tanto interessavam ao monarca português.

Este episódio serve também para mostrar que a lenda de que Vasco da Gama seria descendente de uma família fidalga não passa de lenda popular. Nenhum monarca da altura encarregaria um monarca de fazer um serviço como este que vimos. Seria contra a mentalidade da época. Para mais, é sabido que el-rei D. João II tinha vários servidores talentosos recrutados entre pessoas de classes sociais ditas humildes e que não estaria apenas dependente dos seus conhecimentos junto do clero e nobreza. D. João II podia assim requisitar qualquer serviço, por muito estranho e invulgar que fosse sem que lhe fossem colocadas questões ou sem necessitar de fazer perigar a sua posição política. Este monarca, aliás, costumava dizer que os países são como o mar tendo muitas espécies de peixes diferentes: o salmonete que é muito bom mas muito caro, faz-se pagar e é difícil de apagar e a sardinha que existe em abundância, é saborosa e não custa quase nada. E D. João II usualmente concluía "eu sou pela sardinha" querendo significar com isto que procurava apoio nas classes populares sempre que o podia fazer. E, de facto, no seu reinado conseguiu todo o apoio político das classes populares.

Era frequente servir-se de agentes como Estevão da Gama, decididos, corajosos, capazes de correr quaisquer perigos necessários. Era por serviços como o descrito acima que Estevão da Gama era alcaide do castelo. De notar também que o castelo não dependia do rei mas sim da Ordem de Santiago. A sede da Ordem de Santiago era no castelo de Palmela uma vez que era aí que estava o mestre da Ordem, D. Jorge (filho do rei D. João II). Assim, D. Manuel podeia gostar muito de Vasco da Gama, mas Sines não pertencia ao rei D. Manuel pertencia a D. Jorge filho do rei D. João II, o monarca da altura de Estevão da Gama. D. Jorge era o homem que o rei D. João II quis que fosse rei. Acaba por não o ser pois em Roma estava o cardeal Alpedrinha e o cardeal D. Jorge da Costa inimigos do rei D. João II que conseguiram dispôr as coias de forma a que a Santa Sé nunca reconhecesse que D. Jorge era filho do rei D. João (mesmo apesar de D. João o ter criado como seu filho e como sucessor da coroa portuguesa). Como Roma não o legitimou D. Jorge não pôde herdar o trono e em vez de ser o filho de D. João II a herdar acabou por ser o primo D. Manuel.

Estes factos não viriam a perturbar a condução dos assuntos de Estado nem sequer a causar qualquer perturbação familiar entre os dois primos (D. Jorge e D. Manuel) uma vez que D. Manuel sempre tratou dos assuntos de seu primo com todo o cuidado. Foi por isso que D. Manuel não se conseguiu impôr enquanto monarca quando quis dar a vila de Sines a Vasco da Gama por serviços prestados: seu primo, que era a cabeça da Ordem detentora da vila não concordou. D. Manuel não teve a coragem e não quis passar por cima da autoridade do filho do anterior rei. Foi preciso que Vasco da Gama esperasse 20 anos até ser conde em 1518. A promessa de que seria feito conde ocorreu logo após a descoberta do caminho marítimo para a Índia em 1498. E, mesmo após esse tempo acaba não por ser conde de Sines mas antes da Vidigueira e Vila de Frades. É após a compra destas duas localidades por Vasco da Gama e após ter sido feito conde que Vasco da Gama se passa a auto-intitular Almirante-conde e passa a rodear-se de um fausto quase real.

Vasco da Gama entrou na história por ter sido o comandante da expedição que descobriu o caminho marítimo directo desde Lisboa até à Índia. Na altura da descoberta já todos os países europeus conheciam a Índia e sabiam onde ficava. A Índia abastecia a Europa de especiarias que eram uma mercadoria preciosa devido ao seu uso na alimentação (conservação e uso culinário), medicina, farmácia, fabrico de colas, de tintas e perfumes. O mecanismo de conseguir as especiarias era algo complexo e passava por vários intermediários o que as tornava um produto particularmente caro e difícil de obter. Normalmente eram mercadores árabes que da Índia as traziam até à região do Médio Oriente e do Mediterrâneo Oriental. Quem fazia a distribuição para a Europa Ocidental eram normalmente as cidades italianas tradicionalmente ocupadas no comércio com o oriente.

Daí que, desde há muito tempo que a generalidade dos países da Europa Ocidental procurassem encontrar uma forma de achar o caminho marítimo para o oriente. É isso que leva Cristóvão Colombo a propôr ao rei de Portugal, D. João II, uma tentativa de descoberta da Índia mas através de uma circunavegação (navegando sempre para Ocidente em linha recta até chegar ao oriente ao invés de tantar navegar para Oriente). D. João II tinha muitas dúvidas acerca da eficácia da tentativa de Cristóvão Colombo. Se bem que os argumentos de Colombo pudessem ter colhido simpatias junto do rei português, este estava interessado numa viagem que efectivamente lhe trouxesse o resultado seguro da descoberta do caminho para a Índia e não hvia nenhuma certeza de que Colombo não fosse encontrar obstáculos demasiado grandes pelo caminho. Colombo haveria de encontrar um obstáculo que julgou ser a Índia de início: a América.

De qualquer forma D. João II não cede e não ordena a expedição de Colombo acabando por ser os reis católicos mais tarde a fazê-lo. É sim, D. Manuel que ordena aos irmãos Gama que preparem a expedição. Vasco da Gama embarca então como comandante numa expedição cujo primeiro objectivo era descobrir se, navegando para Oriente, seria possível chegar à Índia. A expedição sai com duas naus feitas de propósito p aquela expedição (S. Gabriel e S. Rafael) uma caravela chamada Perreo e há alguns historiadores q defendem a inclusão de um quarto navio, um velho navio carregado de abastecimentos. A expedição sai de Lisboa em 8 de Julho de 1497 com cerca de 150 homens, do local onde hoje estão os Jerónimos. Daí que, ainda hoje, o dia 8 de Julho seja o dia da Marinha em Portugal. A viagem durou dois anos. Chegaram a Calecute em 28 de Maio de 1498 onde encontraram dificuldades em conseguir acordos comerciais com o Samorim de Calecute. Regressam depois a Portugal numa viagem dramática. A viagem de regresso enfrentou ventos contrários (só p atravessar o Índico levaram mais de três meses), todos os dias morriam marinheiros vítimas de escorbuto. Quando chegaram a Lisboa em finais de Agosto de 1499, já só eram 30 dos 150 que tinham partido.

Apesar das dificuldades Portugal ficou, com aquela viagem, com uma importante posição no comércio das especiarias e com a descoberta mais decisiva da passagem da Idade Média para a Idade Moderna: a ligação marítima entre ocidente e oriente. Havia também uma questão mais pessoal. Colombo tinha sido nomeado pelos reis católicos almirante-mor do mar das Índias (apesar de não ter descoberto o caminho para a Índia) e existia alguma picardia entre os monarcas espanhóis e o português por esse facto. Quando a expedição portuguesa chega a Lisboa, D. Manuel nomeia imediatamente Vasco da Gama almirante-mor das Índias para mostrar que, afinal, o caminho para a Índia tinha sido descoberta por ele e não por Colombo. D. Manuel foi generoso com Vasco da Gama e, em pouco tempo, fez dele um homem rico.

Mas depois desta expedição Vasco da Gama volta ainda a prestar grandes serviços ao rei. Para a armade seguinte, cerca de 1500, já é nomeado comandante um fidalgo. Na primeira viagem, o desconhecido e as hipóteses de se perder totalmente a armada levaram a que se nomeasse Vasco da Gama, na altura um mero escudeiro. Desta feita, o elemento desconhecido era mais reduzido, as hipóteses de sucesso eram maiores e então o monarca nomeia Pedro Álvares Cabral comandante da expedição. Como se sabe foi esta expedição que descobriu o Brasil. Mas esta expedição foi mal sucedida: os portugueses que foram deixados na Índia acabam chacinados devido a intrigas entre mercadores. Ao que parece a rivalidade com os mercadores muçulmanos teria cabado num banho de sangue tendo sido os portugueses todos mortos. Isto faz com que a coroa perceba que não poderá fazer concorrência comercial no oriente sem considerar o aspecto militar.

Assim, D. Manuel volta a chamar Vasco da Gama e, desta feita, fornece-lhe uma armada com 20 navios com cerca de 3.000 homens, muita artilharia e encarrega-o de voltar à Índia vingar a chacina dos portugueses, tomar e defender a feitoria onde os portugueses se tinham instalado. Vasco da Gama regressa à Índia em 1502 tendo resolvido a questão com uma ferocidade que em pouco tempo o terror estava espalhado na região pois o rasto de sangue deixado pela expedição teria sido muito grande. Ao mesmo tempo que espalha o terror deixa afirmado o poder da coroa portuguesa do séc. XVI conseguido com isso obter benefícios económicos importantes. Durante muito tempo hindus e muçulmanos não molestam mais qualquer português.

Após essa expedição volta para Sines. Estava a construir uma casa apalaçada quando o mestre da Ordem de Santiago, D. Jorge, protestou contra a construção da casa devido a não ter dado permissão para novas edificações num região controlada por si. O rei D. Manuel é obrigado a enviar uma carta a Vasco da Gama onde lhe dá 30 dias para abandonar a vila de Sines levando a família e proibindo-o de regressar à vila. Ao que se sabe isto terá desgostado bastante Vasco da Gama, ao ponto de o fazer desejar abandonar o país. Envia um pedido ao rei onde pede permissão para ir servir o país noutras terras. Mas o pedido é recusado.

Mais tarde os serviços de Vasco da Gama voltam a ser necessários. Desta feita não se tratava de reforçar a posição portuguesa militarmente ou de criar as condições de segurança para a presença portuguesa na Índia. Acontece que a presença portuguesa na Índia se tinha desleixado permitindo um aumento da corrupção, preguiça, desrespeito pelas ordens e interesses da coroa... Nesta altura, 1524, Vasco da Gama não é já um homem novo tendo já passado dos cinquenta anos. Com a sua idade e o desgaste de uma vida ao serviço da coroa sempre em missões difíceis ao fim de três meses de chegar à Índia morre devido ao esforço, à violência de mais uma viagem e do trabalho que encontrou pela frente. Ele tenta, em três meses acabar com alguns anos de desorganização.

Apesar de ser considerado um herói nacional, Vasco da Gama é uma figura não muito celebrada em Portugal. Em todo o país há pouquissimas estátuas desta personagem. A localidade onde se sente mais a sua presença continua a ser Sines.

Carta de Pêro Vaz de Caminha

Senhor, posto que o capitão-mor desta vossa frota e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que se ora nesta navegação achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que para o bem contar e falar o saiba pior que todos fazer. Mas tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual, bem certo, creia que por afremosentar nem afear haja aqui de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu. Da marinhagem e singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer e os pilotos devem ter esse cuidado. E, portanto, Senhor, do que hei-de falar começo e digo que a partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de Março. 
E sábado, 14 do dito mês, entre as 8 e 9 horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã Canária. E ali andámos todo aquele dia, em calma, à vista delas, obra de três ou quatro léguas. 
E domingo, 22 do dito mês, às 10 horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas do Cabo Verde, isto é, da ilha de S. Nicolau, segundo dito de Pêro Escobar, piloto.
E a noute seguinte, à segunda-feira, quando lhe amanheceu, se perdeu da frota Vasco d'Ataíde, com a sua nau, sem aí haver tempo forte nem contrairo para poder ser. Fez o capitão suas diligências para o achar, a umas e a outras partes, e não apareceu mais.
E assim seguimos nosso caminho por este mar de longo de domingo de Páscoa, até terça-feira d'oitavas de Páscoa, que foram 21 dias d’Abril, que topámos alguns sinais de terra, sendo da dita ilha, segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas, os quais eram muita quantidade d'ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho e assim outras, a que também chamam rabo d’asno.
E à quarta-feira seguinte, pela manhã, topámos aves, a que chamam fura-buchos. E neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra, isto é, primeiramente d’um grande monte, mui alto e redondo, e d'outras serras mais baixas a sul dele e de terra chã com grandes arvoredos, ao qual monte alto o capitão pôs nome o Monte Pascoal e à terra a Terra de Vera Cruz.
Mandou lançar o prumo, acharam 25 braças, e, ao solposto, obra de 6 léguas de terra, surgimos âncoras em 19 braças; ancoragem limpa. Ali ficámos toda aquela noute. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos direitos à terra e os navios pequenos diante, indo por 17, 16, 15, 14, 13, 12, 10 e 9 braças até meia légua de terra, onde todos lançamos âncoras em direito da boca dum rio. E chegaríamos a esta ancoragem às 10 horas, pouco mais ou menos.
E dali houvemos vista d'homens, que andavam pela praia, de 7 ou 8, segundo os navios pequenos disseram, por chegarem primeiro. Ali lançamos os batéis e esquifes fora e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do capitão-mor e ali falaram.
E o capitão mandou no batel, em terra, Nicolau Coelho, para ver aquele rio. E, tanto que ele começou para lá d'ir, acudiram pela praia homens, quando dous, quando três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, eram ali 18 ou 20 homens, pardos, todos nus, sem nenhuma cousa que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos e suas setas. Vinham todos rijos para o batel e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pusessem os arcos; e eles os puseram. 
Ali não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho, que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe deu um sombreiro de penas d’aves, compridas, com uma copazinha pequena de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer d'aljaveira, as quais peças creio que o capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder deles haver mais fala, por azo do mar. 
A noute seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros, que fez caçar as naus e especialmente a capitânia. E à sexta, pela manhã, às 8 horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o capitão levantar âncoras e fazer vela. E fomos de longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados pela popa, contra o norte para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso onde ficássemos para tomar água e lenha, não por nos já minguar, mas por nos acertamos aqui.
E quando fizemos vela seriam já na praia assentados junto com o rio obra de 60 ou 70 homens, que se juntaram ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o capitão aos navios pequenos que fossem mais chegados à terra e que, se achassem pouso seguro para as naus, quc amainassem.
E, sendo nós pela costa, obra de 10 léguas donde nos levantámos, acharam os ditos navios pequenos um arrecife com um porto dentro, muito bom e muito seguro. E as naus arribaram sobre eles. E um pouco ante sol-posto amainaram obra d’uma légua do arrecife e ancoraram-se em 11 braças.
E sendo Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos por mandado do capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro. E tomou em uma almadia dous daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos. E um deles trazia um arco e 6 ou 7 setas. E na praia andavam muitos com seus arcos e setas e não lhes aproveitaram. Trouxe-os logo, já de noute, ao capitão, onde foram recebidos com muito prazer e festa. 
A feição deles é serem pardos, maneira d'avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma cousa cobrir nem mostrar suas vergonhas. E estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto. Traziam ambos os beiços de baixo furados e metido por eles um osso branco de comprimento duma mão travessa e de grossura dum fuso d’algodão e agudo na ponta como furador. Metem-no pela parte de dentro do beiço e o que lhe fica entre o beiço e os dentes e feito como roque de xadrez; e em tal maneira o trazem ali encaixado, que lhes não dá paixão nem lhes estorva a fala, nem comer, nem beber. Os cabelos seus são corredios e andavam tosquiados de tosquia alta mais que de sobre-pente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma maneira de cabeleira de penas d'ave amarela, que seria de comprimento dum coto, mui basta e mui çarrada que lhe cobria o toutiço e as orelhas, a qual andava pegada nos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera e não no era; de maneira que andava a cabeleira mui redonda e mui basta e mui igual, que não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
O capitão, quando eles vieram, estava assentado em uma cadeira e uma alcatifa aos pés por estrado, e bem vestido, com um colar d’ouro mui grande ao pescoço. E Sancho de Tovar e Simão de Miranda e Nicolau Coelho e Aires Correa e nós outros, que aqui na nau com ele imos, assentados no chão por essa alcatifa. Acenderam tochas e entraram e não fizeram nenhuma menção de cortesia nem de falar ao capitão nem a ninguém. Um deles, porém, pôs olho no colar do capitão e começou d'acenar com a mão para a terra e despois para o colar, como que nos dizia que havia em terra ouro. E também viu um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e então para o castiçal, como que havia também prata. Mostraram-lhes um papagaio pardo, que aqui o capitão traz, tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como que os havia aí. Mostraram-lhes um carneiro, não fizeram dele menção. Mostraram-lhes uma galinha, quase haviam medo dela e não lhe queriam pôr a mão e despois a tomaram como espantados. 
Deram-lhes ali de comer pão e pescado cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados; não quiseram comer daquilo quase nada. E alguma cousa, se a provavam, lançavam-na logo fora. Trouxeram-lhes vinho por uma taça, mal lhe puseram a boca e não gostaram dele nada nem o quiseram mais. Trouxeram-lhes água por uma albarrada; tomou cada um deles um bocado dela e não beberam; somente lavaram as bocas e lançaram fora.
Viu um deles umas contas de rosairo, brancas; acenou que lhas dessem e folgou muito com elas e lançou-as ao pescoço e despois tirou-as e embrulhou-as no braço; e acenava para a terra e então para as contas e para o colar do capitão, como que dariam ouro por aquilo. Isto tomávamos nós assim por o desejarmos; mas, se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, porque lhos não havíamos de dar. E despois tomou as contas a quem lhas deu.
E então estiraram-se assim de costas na alcatifa, a dormir, sem ter nenhuma maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas e as cabeleiras delas bem rapadas e feitas. O capitão mandou pôr a cabeça de cada um deles um coxim e o da cabeleira procurava assaz por a não quebrar. E lançaram-lhes um manto em cima e eles consentiram e ficaram e dormiram.
Ao sábado, pela manhã, mandou o capitão fazer vela e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de seis, sete braças. E entraram todas as naus dentro e ancoraram-se em cinco, seis braças, a qual ancoragem dentro é tão grande e tão fremosa e tão segura que podem jazer dentro nela mais de 200 navios e naus.
E tanto que as naus foram pousadas e ancoradas, vieram os capitães todos a esta nau do capitão-mor. E daqui mandou o capitão Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dous homens e os deixassem ir com seu arco e setas, a cada um dos quais mandou dar uma camisa nova e uma carapuça vermelha e um rosairo de contas brancas d'osso, que eles levavam nos braços, e um cascavél e uma campainha. E mandou com eles para ficar lá um mancebo degradado, criado de D. João Teloga que chamam Afonso Ribeiro, para andar lá com eles e saber de seu viver e maneira e a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho.
Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo obra de 200 homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pusessem os arcos e eles os puseram e não e se afastavam muito. E, mal tinham posto os arcos, então saíram os que nós levávamos e o mancebo degradado com eles, os quais, assim como saíram, não pararam mais, nem esperava um por outro senão a quem mais correria. E passaram um rio, que por aí corre, d'água doce, de muita água, que lhes dava pela braga, e outros muitos com eles. E foram assim correndo além do rio entre umas moitas de palmas, onde estavam outros, e ali pararam. E naquilo tinha ido o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levou até lá. Mas logo o tornaram a nós. E com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.
E então se começaram de chegar muitos; e entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam. E traziam cabaças d'água, e tomavam alguns barris que nós levávamos e enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todo chegassem a bordo do batel. Mas junto a ele, lançavam-nos da mão. E nós tomávamo-los. E pediam que lhes dessem alguma coisa. 
Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, e a outros uma manilha, de maneira que com aquela encarna quase que nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas em troca de sombreiros e carapuças de linho, e de qualquer coisa que a gente lhes queria dar. 
Dali se partiram os outros, dois mancebos, que não os vimos mais. 
Dos que ali andavam, muitos -- quase a maior parte --traziam aqueles bicos de osso nos beiços. 
E alguns, que andavam sem eles, traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha. E alguns deles traziam três daqueles bicos, a saber um no meio, e os dois nos cabos.
E andavam lá outros, quartejados de cores, a saber metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, um tanto azulada; e outros quartejados d'escaques. 
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam. 
Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbana deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém. Acenamos-lhes que se fossem. E assim o fizeram e passaram-se para além do rio. E saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris d'água que nós levávamos. E tornamo-nos às naus. E quando assim vínhamos, acenaram-nos que voltássemos. Voltamos, e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles, o qual levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não trataram de lhe tirar coisa alguma, antes mandaram-no com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, que lhe desse aquilo. E ele tornou e deu aquilo, em vista de nós, a aquele que o da primeira agasalhara. E então veio-se, e nós levamo-lo.
Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por galanteria, cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia seteado como São Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; e outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela. Nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós. 
E com isto nos tornamos, e eles foram-se.
À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, perto da praia. Mas ninguém saiu em terra, por o Capitão o não querer, apesar de ninguém estar nela. Apenas saiu -- ele com todos nós -- em um ilhéu grande que está na baía, o qual, aquando baixamar, fica mui vazio. Com tudo está de todas as partes cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele, e todos nós, bem uma hora e meia. E pescaram lá, andando alguns marinheiros com um chinchorro; e mataram peixe miúdo, não muito. E depois volvemo-nos às naus, já bem noite.
Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu, e dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram, a qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.
Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a qual esteve sempre bem alta, da parte do Evangelho. 
Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação, da história evangélica; e no fim tratou da nossa vida, e do achamento desta terra, referindo-se à Cruz, sob cuja obediência viemos, que veio muito a propósito, e fez muita devoção.
Enquanto assistimos à missa e ao sermão, estaria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos, como a de ontem, com seus arcos e setas, e andava folgando. E olhando-nos, sentaram. E depois de acabada a missa, quando nós sentados atendíamos a pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias -- duas ou três que lá tinham -- as quais não são feitas como as que eu vi; apenas são três traves, atadas juntas. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra, só até onde podiam tomar pé.
Acabada a pregação encaminhou-se o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos indo todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para o entregar a eles. E nós todos trás dele, a distância de um tiro de pedra. 
Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não os punham.
Andava lá um que falava muito aos outros, que se afastassem. Mas não já que a mim me parecesse que lhe tinham respeito ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas. Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costas e pelos quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era tão vermelha que a água lha não comia nem desfazia. Antes, quando saía da água, era mais vermelho. Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava no meio deles, sem implicarem nada com ele, e muito menos ainda pensavam em fazer-lhe mal. Apenas lhe davam cabaças d'água; e acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão. E viemo-nos às naus, a comer, tangendo trombetas e gaitas, sem os mais constranger. E eles tornaram-se a sentar na praia, e assim por então ficaram.
Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e sermão, espraia muito a água e descobre muita areia e muito cascalho. Enquanto lá estávamos foram alguns buscar marisco e não no acharam. Mas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande e muito grosso; que em nenhum tempo o vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e de amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira. E depois de termos comido vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se aportou; e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor mandar descobrir e saber dela mais do que nós podíamos saber, por irmos na nossa viagem.
E entre muitas falas que sobre o caso se fizeram foi dito, por todos ou a maior parte, que seria muito bem. E nisto concordaram. E logo que a resolução foi tomada, perguntou mais, se seria bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui em lugar deles outros dois destes degredados.
E concordaram em que não era necessário tomar por força homens, porque costume era dos que assim à força levavam para alguma parte dizerem que há de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens desses degredados que aqui deixássemos do que eles dariam se os levassem por ser gente que ninguém entende. Nem eles cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam quando cá Vossa Alteza mandar.
E que portanto não cuidássemos de aqui por força tomar ninguém, nem fazer escândalo; mas sim, para os de todo amansar e apaziguar, unicamente de deixar aqui os dois degredados quando daqui partíssemos. 
E assim ficou determinado por parecer melhor a todos. 
Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra. E ver-se-ia bem, quejando era o rio. Mas também para folgarmos.
Fomos todos nos batéis em terra, armados; e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenaram que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais ancho que um jogo de mancal. E tanto que desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. E alguns aguardavam; e outros se afastavam. Com tudo, a coisa era de maneira que todos andavam misturados. Eles davam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho, e por qualquer coisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos e andaram assim misturados com eles, que eles se esquivavam, e afastavam-se; e iam alguns para cima, onde outros estavam. E então o Capitão fez que o tomassem ao colo dois homens e passou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais que aquela do costume. Mas logo que o Capitão chamou todos para trás, alguns se chegaram a ele, não por o reconhecerem por Senhor, mas porque a gente, nossa, já passava para aquém do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas, daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, de tal maneira que os nossos levavam dali para as naus muitos arcos, e setas e contas.
E então tornou-se o Capitão para aquém do rio. E logo acudiram muitos à beira dele. 
Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha nenhuma.
Também andava lá outra mulher, nova, com um menino ou menina, atado com um pano aos peitos, de modo que não se lhe viam senão as perninhas. Mas nas pernas da mãe, e no resto, não havia pano algum. 
Em seguida o Capitão foi subindo ao longo do rio, que corre rente à praia. E ali esperou por um velho que trazia na mão uma pá de almadia. Falou, enquanto o Capitão estava com ele, na presença de todos nós; mas ninguém o entendia, nem ele a nós, por mais coisas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro, porque desejávamos saber se o havia na terra. 
Trazia este velho o beiço tão furado que lhe cabia pelo buraco um grosso dedo polegar. E trazia metido no buraco uma pedra verde, de nenhum valor, que fechava por fora aquele buraco. E o Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela para a boca do Capitão para lha meter. Estivemos rindo um pouco e dizendo chalaças sobre isso. E então enfadou-se o Capitão, e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho; não por ela valer alguma coisa, mas para amostra. E depois houve-a o Capitão, creio, para mandar com as outras coisas a Vossa Alteza.
Andamos por aí vendo o ribeiro, o qual é de muita água e muito boa. Ao longo dele há muitas palmeiras, não muito altas; e muito bons palmitos. Colhemos e comemos muitos deles. 
Depois tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde tínhamos desembarcado. 
E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante os outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como de animais montezes, e foram-se para cima.
E então passou o rio o Capitão com todos nós, e fomos pela praia, de longo, ao passo que os batéis iam rentes à terra. E chegamos a uma grande lagoa de água doce que está perto da praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares. 
E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles meter-se entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão que Bartolomeu Dias matou. E levavam-lho; e lançou-o na praia.
Bastará que até aqui, como quer que se lhes em alguma parte amansassem, logo de uma mão para outra se esquivavam, como pardais do cevadouro. Ninguém não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais. E tudo se passa como eles querem -- para os bem amansarmos ! 
Ao velho com quem o Capitão havia falado, deu-lhe uma carapuça vermelha. E com toda a conversa que com ele houve, e com a carapuça que lhe deu tanto que se despediu e começou a passar o rio, foi-se logo recatando. E não quis mais tornar do rio para aquém. Os outros dois o Capitão teve nas naus, aos quais deu o que já ficou dito, nunca mais aqui apareceram -- fatos de que deduzo que é gente bestial e de pouco saber, e por isso tão esquiva. Mas apesar de tudo isso andam bem curados, e muito limpos. E naquilo ainda mais me convenço que são como aves, ou alimárias montezinhas, as quais o ar faz melhores penas e melhor cabelo que às mansas, porque os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode ser mais! E isto me faz presumir que não tem casas nem moradias em que se recolham; e o ar em que se criam os faz tais. Nós pelo menos não vimos até agora nenhumas casas, nem coisa que se pareça com elas. 
Mandou o Capitão aquele degredado, Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. E foi; e andou lá um bom pedaço, mas a tarde regressou, que o fizeram eles vir: e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nada do seu. Antes, disse ele, que lhe tomara um deles umas continhas amarelas que levava e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após ele, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de feteiras muito grandes, como as de Entre Douro e Minho. E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir.
Segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos; mas não tantos como as outras vezes. E traziam já muito poucos arcos. E estiveram um pouco afastados de nós; mas depois pouco a pouco misturaram-se conosco; e abraçavam-nos e folgavam; mas alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha e por qualquer coisa. E de tal maneira se passou a coisa que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles para onde outros muitos deles estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, uns verdes, outros amarelos, dos quais creio que o Capitão há de mandar uma amostra a Vossa Alteza.
E segundo diziam esses que lá tinham ido, brincaram com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados: uns andavam quartejados daquelas tinturas, outros de metades, outros de tanta feição como em pano de ras, e todos com os beiços furados, muitos com os ossos neles, e bastantes sem ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que na cor queriam parecer de castanheiras, embora fossem muito mais pequenos. E estavam cheios de uns grãos vermelhos, pequeninos que, esmagando-se entre os dedos, se desfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.
Todos andam rapados até por cima das orelhas; assim mesmo de sobrancelhas e pestanas. 
Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas de tintura preta, que parece uma fita preta da largura de dois dedos. 
E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem meter-se entre eles; e assim mesmo a Diogo Dias, por ser homem alegre, com que eles folgavam. E aos degredados ordenou que ficassem lá esta noite.
Foram-se lá todos; e andaram entre eles. E segundo depois diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais diziam que eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitaina. E eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoável altura; e todas de um só espaço, sem repartição alguma, tinham de dentro muitos esteios; e de esteio a esteio uma rede atada com cabos em cada esteio, altas, em que dormiam. E de baixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma numa extremidade, e outra na oposta. E diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os encontraram; e que lhes deram de comer dos alimentos que tinham, a saber muito inhame, e outras sementes que na terra dá, que eles comem. E como se fazia tarde fizeram-nos logo todos tornar; e não quiseram que lá ficasse nenhum. E ainda, segundo diziam, queriam vir com eles. Resgataram lá por cascavéis e outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos, e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, espécie de tecido assaz belo, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse. E com isto vieram; e nós tornamo-nos às naus.
Terça-feira, depois de comer, fomos em terra, fazer lenha, e para lavar roupa. Estavam na praia, quando chegamos, uns sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. E depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos. E misturaram-se todos tanto conosco que uns nos ajudavam a acarretar lenha e metê-las nos batéis. E lutavam com os nossos, e tomavam com prazer. E enquanto fazíamos a lenha, construíam dois carpinteiros uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortara. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais para verem a ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles conosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer. 
E o Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia e que de modo algum viessem a dormir às naus, ainda que os mandassem embora. E assim se foram.
Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios essas árvores; verdes uns, e pardos, outros, grandes e pequenos, de sorte que me parece que haverá muitos nesta terra. Todavia os que vi não seriam mais que nove ou dez, quando muito. Outras aves não vimos então, a não ser algumas pombas-seixeiras, e pareceram-me maiores bastante do que as de Portugal. Vários diziam que viram rolas, mas eu não as vi. Todavia segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infinitas espécies, não duvido que por esse sertão haja muitas aves! 
E cerca da noite nós volvemos para as naus com nossa lenha.
Eu creio, Senhor, que não dei ainda conta aqui a Vossa Alteza do feitio de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, e as setas compridas; e os ferros delas são canas aparadas, conforme Vossa Alteza verá alguns que creio que o Capitão a Ela há de enviar. 
Quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada um podia levar. Eles acudiram à praia, muitos, segundo das naus vimos. Seriam perto de trezentos, segundo Sancho de Tovar que para lá foi. Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem ordenara que de toda maneira lá dormissem, tinham voltado já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. E traziam papagaios verdes; e outras aves pretas, quase como pegas, com a diferença de terem o bico branco e rabos curtos. E quando Sancho de Tovar recolheu à nau, queriam vir com ele, alguns; mas ele não admitiu senão dois mancebos, bem dispostos e homens de prol. Mandou pensar e curá-los mui bem essa noite. E comeram toda a ração que lhes deram, e mandou dar-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. E dormiram e folgaram aquela noite. E não houve mais este dia que para escrever seja.
Quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas, e veio-lhe comida. E comeu. Os hóspedes, sentaram-no cada um em sua cadeira. E de tudo quanto lhes deram, comeram mui bem, especialmente lacão cozido frio, e arroz. Não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem. 
Acabado o comer, metemo-nos todos no batel, e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. E logo que a tomou meteu-a no beiço; e porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pouca de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço da parte de trás de sorte que segurasse, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima; e ia tão contente com ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela. E não tornou a aparecer lá.
Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir. E parece-me que viriam este dia a praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos, e alguns deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam beber. Mas quer-me parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de boa vontade! Andavam todos tão bem dispostos e tão bem feitos e galantes com suas pinturas que agradavam. Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mil boas vontades, e levavam-na aos batéis. E estavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles.
Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até um ribeiro grande, e de muita água, que ao nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia, em que nós tomamos água. Ali descansamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dele, entre esse arvoredo que é tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade de folhagem que não se pode calcular. Há lá muitas palmeiras, de que colhemos muitos e bons palmitos. 
Ao sairmos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos em direitura à cruz que estava encostada a uma árvore, junto ao rio, a fim de ser colocada amanhã, sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou doze que lá estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram todos beijá-la.
Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!
Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos. 
Nesse dia, enquanto ali andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamboril nosso, como se fossem mais amigos nossos do que nós seus. Se lhes a gente acenava, se queriam vir às naus, aprontavam-se logo para isso, de modo tal, que se os convidáramos a todos, todos vieram. Porém não levamos esta noite às naus senão quatro ou cinco; a saber, o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um que já trazia por pagem; e Aires Gomes a outro, pagem também. Os que o Capitão trazia, era um deles um dos seus hóspedes que lhe haviam trazido a primeira vez quando aqui chegamos -- o qual veio hoje aqui vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados tanto de comida como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar.
E hoje que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio, contra o sul onde nos pareceu que seria melhor arvorar a cruz, para melhor ser vista. E ali marcou o Capitão o sítio onde haviam de fazer a cova para a fincar. E enquanto a iam abrindo, ele com todos nós outros fomos pela cruz, rio abaixo onde ela estava. E com os religiosos e sacerdotes que cantavam, à frente, fomos trazendo-a dali, a modo de procissão. Eram já aí quantidade deles, uns setenta ou oitenta; e quando nos assim viram chegar, alguns se foram meter debaixo dela, ajudar-nos. Passamos o rio, ao longo da praia; e fomos colocá-la onde havia de ficar, que será obra de dois tiros de besta do rio. Andando-se ali nisto, viriam bem cento cinqüenta, ou mais. Plantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós estávamos, com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção.
Estiveram assim conosco até acabada a comunhão; e depois da comunhão, comungaram esses religiosos e sacerdotes; e o Capitão com alguns de nós outros. E alguns deles, por o Sol ser grande, levantaram-se enquanto estávamos comungando, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, se conservou ali com aqueles que ficaram. Esse, enquanto assim estávamos, juntava aqueles que ali tinham ficado, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles, falando-lhes, acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou com o dedo para o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos!
Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima, e ficou na alva; e assim se subiu, junto ao altar, em uma cadeira; e ali nos pregou o Evangelho e dos Apóstolos cujo é o dia, tratando no fim da pregação desse vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, que nos causou mais devoção. 
Esses que estiveram sempre à pregação estavam assim como nós olhando para ele. E aquele que digo, chamava alguns, que viessem ali. Alguns vinham e outros iam-se; e acabada a pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda. E houveram por bem que lançassem a cada um sua ao pescoço. Por essa causa se assentou o padre frei Henrique ao pé da cruz; e ali lançava a sua a todos -- um a um -- ao pescoço, atada em um fio, fazendo-lha primeiro beijar e levantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançavam-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta. E isto acabado -- era já bem uma hora depois do meio dia -- viemos às naus a comer, onde o Capitão trouxe consigo aquele mesmo que fez aos outros aquele gesto para o altar e para o céu, (e um seu irmão com ele). A aquele fez muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca; e ao outro uma camisa destoutras.
E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, do que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos; por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar; porque já então terão mais conhecimentos de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram.
Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, à qual deram um pano com que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior -- com respeito ao pudor. 
Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive se se convertera, ou não, se lhe ensinarem o que pertence à sua salvação.
Acabado isto, fomos perante eles beijar a cruz. E despedimo-nos e fomos comer. 
Creio, Senhor, que, com estes dois degredados que aqui ficam, ficarão mais dois grumetes, que esta noite se saíram em terra, desta nau, no esquife, fugidos, os quais não vieram mais. E cremos que ficarão aqui porque de manhã, prazendo a Deus fazemos nossa partida daqui. 
Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao longo do mar em algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra de cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia... muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos -- terra que nos parecia muito extensa.
Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem! 
Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação de Calicute bastava. Quanto mais, disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa fé!
E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta Vossa terra vi. E se a um pouco alonguei, Ela me perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo fez pôr assim pelo miúdo. 
E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro -- o que d'Ela receberei em muita mercê. 
Beijo as mãos de Vossa Alteza.

Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.

Pêro Vaz de Caminha.

Índice

Pré-História (das origens do homem até c. 4000 a.C.) As múmias dos Chinchorros Antiguidade (de c. 4000 a.C. a 476) A Esfinge do Eg...